Entrevistas analisam a crise do país

Na sexta-feira passada, a Fundação Perseu Abramo lançou o livro “Leituras da Crise – Diálogos sobre o PT, a Democracia Brasileira e o Socialismo”. São quatro entrevistas com Marilena Chauí, filósofa, Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, Leonardo Boff, teólogo e João Pedro Stedile, integrante da direção nacional do MST feitas pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Juarez Guimarães.

Em seu depoimento, Stedile afirma que “em relação aos três anos e meio do governo Lula, se houve avanços ou recuos para a agricultura camponesa, que o balanço é negativo para os camponeses. Não porque o Ministério do Desenvolvimento Agrário não fez mais do que ele devia, mas porque a classe patronal avançou mais, em função das outras políticas no Ministério da Agricultura e na política econômica”. Leia abaixo a entrevista completa.

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A CRISE HISTÓRICA DO BRASIL

Juarez Guimarães – A nossa idéia é explorar uma análise da crise vivida no Brasil em 2005, e que se prolonga por 2006, a partir da perspectiva dos movimentos sociais. Nessa perspectiva, que valor você atribui e, ao mesmo tempo, que limites você identifica na iniciativa muito importante tomada pelos movimentos sociais durante a crise, em 2005, no seu momento mais dramático, que foi a Carta ao Povo Brasileiro que, ao mesmo tempo, defendia o governo Lula diante da campanha de desestabilização e fazia uma série de considerações críticas sobre seus rumos? Como você analisa o valor desta experiência e o seu limite?

João Pedro Stedile – Em primeiro lugar, acho que é importante compartilhar a leitura do contexto histórico que nós fazemos que explica um pouco o porquê da Carta. Nós partimos de uma análise de que no fundo a sociedade brasileira está num período de transição, de crise de modelo econômico, de projeto econômico. Todo mundo sabe, faz parte da nossa história, que o Brasil teve até agora vários modelos econômicos que caracterizaram de que forma as classes dominantes priorizaram o seu processo de acumulação e de produção de bens. Então, tivemos o primeiro modelo que foi o agro-exportador, que organizou a sociedade brasileira durante todo o período colonial; depois houve uma crise daquele modelo no final do século XIX que vai até 1930; de 1930 a 1980 tivemos a saída da crise com um novo modelo adotado pelas classes dominantes chamado “modelo de industrialização dependente”, embora aí os autores façam uma rotulagem diferente de acordo com a sua ótica – alguns chamam de “modelo desenvolvimento nacionalista”, outros, como o próprio Fernando Henrique, “a era Vargas”. Este modelo urbanizou e industrializou a sociedade brasileira. Mas entrou em crise na década de 1980. Na década de 1990 tentamos, como classe trabalhadora, como povo brasileiro, apresentar uma alternativa para a crise, que foi o chamado “projeto popular” ou “Programa democrático-popular”, que as esquerdas organizaram em torno do PT. Fizemos a disputa do projeto na eleição de 1989 e fomos derrotados. As elites, então, se rearticularam e passaram a aplicar as políticas econômicas de corte neoliberal. Mas o neoliberalismo em essência – naquela época a gente não se dava conta, mas agora está mais claro – não é um modelo econômico, pois as políticas neoliberais são apenas uma forma do capital internacional impor medidas que garantam a subordinação das economias periféricas aos seus objetivos de continuar acumulando. Os governos Collor, e depois Fernando Henrique, mais do que um novo modelo alternativo que pudesse retomar o crescimento, desenvolver o país mesmo nos marcos capitalistas, aplicaram apenas políticas neoliberais, que serviriam única e exclusivamente para acelerar um processo de concentração da nossa economia, de centralização em torno de grandes grupos econômicos e de subordinação, portanto, de desnacionalização da nossa economia, aos grupos do capital financeiro internacional.

O povo brasileiro, nas eleições de 2002, depois de experimentar esta ilusão que os tucanos impuseram nos dois mandatos do Fernando Henrique, votou contra – tanto é que se dizia que o pior cabo eleitoral do Serra era o Fernando Henrique Cardoso -, porque o povo votou contra a continuidade do neoliberalismo. Na eleição de 2002, tivemos um problema do ponto de vista das esquerdas, já que o controle da campanha eleitoral do Lula foi hegemonizado por uma visão de ganhar as eleições a qualquer preço, e para isso se priorizaram as formas de marketing político, todo tipo de aliança partidária eleitoral e não e priorizou – até se desdenhou – um debate com a sociedade brasileira sobre que projeto alternativo teríamos necessidade de debater para colocar no lugar do neoliberalismo. Então, ganhamos as eleições, mas ganhamos num quadro de disputa eleitoral rebaixado politicamente, em que não houve um debate de projeto. No fundo, o povo votou no Lula confiando que o Lula garantiria as mudanças.
Bom, vem o governo Lula e no primeiro período mantém as políticas neoliberais; nós, os movimento sociais, quando fazíamos interlocução com o governo sempre nos era dito que a manutenção daquelas políticas neoliberais era transitória, que era apenas uma ponte para evitar chantagem, para evitar bloqueio, para evitar um agudizamento da crise econômica tal o grau de dependência financeira que o Brasil estava. E nós, como movimentos sociais, aceitamos essas argumentações de transitoriedade da política neoliberal.

No entanto, passaram-se mais alguns meses e, tanto pela realidade dos fatos políticos como pelas interlocuções que mantivemos dentro do governo, percebemos que aquela política não era transitória, mas que havia uma decisão de manter uma política econômica neoliberal. E, ao mesmo tempo, identificamos que esta decisão do governo Lula de manter as políticas econômicas neoliberais não era uma decisão que representasse a vontade unitária das forças que tinham garantido a vitória e que estavam administrando o país.

Portanto, havia uma disputa muito intensa dentro do governo também sobre qual trajetória seguir. E identificávamos neste debate que havia um núcleo histórico do PT dentro do governo que defendia teses de que era possível redimensionar o governo para a construção de uma aliança com o PMDB que resultasse num projeto de desenvolvimento nacional. Nós já havíamos feito esta leitura de que havia essas posições, ao aceitarmos e compreendermos o papel da aliança com as forças que o vice José Alencar representa. Abro parênteses para dizer que acho que as esquerdas reagiram muito sectariamente à candidatura do José Alencar porque, na verdade, o José Alencar não representava uma aliança com o PL (Partido Liberal), no sentido do que o partido representa politicamente; a aliança com o José Alencar era para ter uma ponte para construir a possibilidade de um projeto de desenvolvimento nacional com outras forças da nossa sociedade.

Então, no início de 2005, quando se deflagra a crise política, que envolve todo o governo, a princípio houve uma leitura exagerada das esquerdas e de certos setores – influenciados pela mídia conservadora – de que a crise era apenas uma crise ética e que vinha à tona naqueles fatos denunciados como de corrupção. A leitura que fizemos dentro dos movimentos sociais é de que se houvesse casos de corrupção, eles deveriam ser avaliados e punidos, mas no nosso modo de entender, a verdadeira natureza da crise não era apenas ética, era, na verdade, uma disputa que se estava travando entre as classes dominantes brasileiras que tentavam transformar o governo Lula em refém das políticas neoliberais. E então, de certa forma a síntese que a Carta ao Povo Brasileiro feita pelos movimentos queria transmitir para a sociedade brasileira era que a natureza da crise era essa: da falta de um modelo de desenvolvimento econômico e da falta de unidade de força em torno daquela proposta, e de que, na verdade, as forças conservadoras que estavam completamente subordinadas ao interesse do capital internacional tentavam jogar o governo num imbróglio de denuncismo que o impedisse que fazer qualquer mudança rumo a um outro projeto. E, como conseqüência dessa leitura da crise, dissemos ao governo e ao presidente Lula de viva voz: “Nós achamos que há uma alternativa para o governo; não basta o governo ficar respondendo se há ou não corrupção – isso é secundário nesta altura da luta de classes. O que é importante é o governo recuperar o debate na sociedade sobre a necessidade de um novo modelo econômico para o país”. Acho que nos movimentos sociais até estávamos rebaixando as demandas históricas, porque do ponto de vista histórico, até 1989, tínhamos acumulado com a esquerda e com os movimentos sociais aquela proposta que resultou no programa democrático-popular e que era e é uma proposta avançada de classe, da classe trabalhadora, do povo brasileiro. Mas agora, diante a derrota política que sofremos em 1989, diante da correlação de forças internacionais, diante do que representou a nossa derrota e dos 15 anos de neoliberalismo que enfrentamos e, sobretudo, diante do refluxo a que o movimento de massas foi condicionado nos últimos anos, achamos que neste contexto um projeto de desenvolvimento econômico nacional é um avanço. E, pelo menos, é uma barreira à continuidade do neoliberalismo, que é uma derrota histórica para toda classe trabalhadora.
Mas voltando à Carta, dissemos ao governo: os movimentos sociais acham que ainda é um avanço retomarmos as teses do desenvolvimento nacional – que se resumem, grosso modo, em desenvolver o mercado interno, estimular o setor industrial e distribuir renda.

São as teses clássicas do desenvolvimento nacional. Mas para recompor esta aliança entre o movimento social e o governo haveria necessidade de o governo dar sinais claros de que não continuaria defendendo a política neoliberal. E do lado dos movimentos sociais também jogamos uma carta na mesa, mas sem muita força porque tínhamos clareza de que também não tínhamos força suficiente para empurrar o governo para esquerda, se no bojo dos nossos movimentos não começasse a surgir sinais do reascenso do movimento de massa. Por que a nossa força não está apenas na justeza das nossas idéias, está no número, no contingente, que conseguimos organizar para as mudanças. E, infelizmente, desde a “Carta ao Povo Brasileiro” até agora, também não conseguimos reconstruir sinais que possam levar a um reascenso do movimento de massas.

OS DESAFIOS DAS FORÇAS SOCIAIS

Juarez Guimarães – Você, então, evitando uma análise puramente conjunturalista da crise, chama a nossa atenção para um período mais longo de impasses e de uma transição que está colocada que depende de um avanço da correlação de forças. Você tem utilizado muito em seus artigos e entrevistas essa idéia de que há um refluxo dos movimentos sociais. Eu li um artigo muito interessante da Laura Tavares, filha da professora Maria da Conceição, problematizando essa idéia do refluxo, no sentido de que no Brasil houve uma certa capacidade importante de resistência ao neoliberalismo – de toda maneira a CUT se manteve com um grau de sindicalização ainda razoavelmente elevado para padrões do terceiro mundo; nós temos ainda o acúmulo do MST como um dos movimentos sociais mais importantes do mundo no campo; as Comunidades Eclesiais de Base ainda mantém a sua força, a sua vivacidade; a esquerda brasileira nunca teve tal projeção institucional, eleitoral como tem hoje; nas eleições de 2002 o PT foi o mais votado entre todos os partidos.

Então, para discutir o conceito de refluxo e fugir da idéia de que os movimentos sociais estão sempre em ascenso, sempre avançando, gostaria de conversar mais com você sobre essa idéia do refluxo. Como você entende este refluxo dos movimentos sociais?

João Pedro Stedile – Antes de entrar na questão específica da pergunta, que é a dinâmica dos movimentos de massa, quero de novo fazer uma contextualização mais geral, porque isso influi no refluxo.

A sociedade brasileira vive uma crise de destino, uma crise de projeto. Isso é importante debatermos, porque há opiniões diferentes no próprio governo e, obviamente, nas classes dominantes. Então, partimos da seguinte leitura: há uma crise na economia brasileira. A economia brasileira não está crescendo, nem mesmo do ponto de vista capitalista; a economia brasileira não está produzindo a solução para as necessidades do povo brasileiro, e, portanto, no contexto de crise econômica afloram os problemas sociais do desemprego, da informalidade, da falta de mobilidade social, da falta de progresso social da classe trabalhadora e isso gera um clima psico-social de desânimo, de derrota, de falta de perspectivas. Se você parte de uma análise, como certos setores da esquerda, que estão no governo, e das classes dominantes, de que a economia brasileira vai muito bem, a sua leitura é diferente dos movimentos. Então se chega à conclusão de que os movimentos estão desanimados porque estão satisfeitos, quando de fato eles estão desanimados justamente porque não têm conquistas, porque há uma crise da economia. Alem do fato de que o operariado industrial sofreu uma grave derrota histórica durante o neoliberalismo, com o desemprego e os avanços a produtividade do trabalho pela revolução tecnológica.

Há uma crise política também instalada no país, na sociedade brasileira. De que natureza é esta crise? Há uma crise das práticas políticas dos partidos, em especial os de esquerda – nem vou falar dos da direita porque eles não refletem nem a vontade da classe dominante. Há uma crise da classe política, sobre a qual podemos voltar a falar. E há uma crise ideológica na sociedade brasileira, não naquele sentido de utopias, mas no sentido de que as pessoas não se mobilizam mais em torno de valores, as pessoas estão lutando pela sobrevivência, e isso afeta o povo, na base, os militantes e os dirigentes. Essa crise ideológica de valores talvez seja uma das conseqüências mais graves do neoliberalismo. E isso vai para dentro dos movimentos também – o dirigente sindical não quer ser presidente para se transformar num líder de massas, ele quer ser presidente porque em algum momento ele vai viver – ele pessoalmente – melhor do que sua categoria, por benesses. Isso é o antivalor: eu quero resolver o meu e não o da minha categoria.

Juarez Guimarães – Não seria contraditória uma idéia de refluxo com a rejeição ao neoliberalismo e a projeção de esperanças que houve em 2002?

João Pedro Stedile – Vou chegar agora à lógica dos movimentos de massa. Os movimentos de massas têm também uma dinâmica histórica, não dependem só da vontade dos dirigentes como alguns setores de esquerda afirmam, ou seja, não é só “um problema de direção”. Não, os movimentos de massas têm uma lógica que está afeta à correlação de forças e, se analisarmos a luta de classes ao longo do século XX, percebemos claramente que esta luta de classes gerou uma verdadeira espiral, em que em certos momentos a classe trabalhadora, o povo, avança, portanto há um reascenso das massas, uma ofensiva de classe, há um embate com a classe dominante, e quando a classe trabalhadora é derrotada, aí se produz um refluxo. Os últimos dois grandes episódios de enfrentamento foram em 1964 e 1989. Em 1964 fomos derrotados e vivemos um refluxo até 1979 – de 1979 em diante reorganizamos nossas forças e tivemos um reascenso do movimento de massas. Na nossa leitura, a eleição de 1989 é enigmática porque só agora compreendemos que ali decidimos um momento da nossa história e a nossa derrota política produziu um descenso do movimento de massas que tem reflexos até hoje.
Costumo citar uma fala do Eric Hobsbawm em que ele considerou extemporânea a vitória do PT nas condições históricas do Brasil. Por quê? Normalmente a esquerda ganha eleições, ou seja, batalhas eleitorais, como fruto do ascenso do movimento de massas. Nós aqui tivemos uma vitória da batalha eleitoral importante, que foi a vitória do Lula, mas em um momento de descenso. E isso é importante entendermos, porque ter ganho eleitoralmente com as massas em descenso é, na verdade, um dos condicionantes que vai caracterizar a ambigüidade do governo Lula.

Então por que caracterizamos que o movimento de massas está em refluxo?

Não é que não haja lutas, movimentos organizados. Há lutas, o povo luta todo dia para sobreviver, e algumas categorias fazem lutas coletivas. Nós, no campo, passamos os 15 anos de neoliberalismo fazendo lutas. Mas aqui utilizo a expressão reascenso do movimento de massas ou refluxo no sentido da capacidade de acúmulo da classe como um todo, em torno da construção de um projeto, da capacidade de se mobilizar para aquele projeto e conseguir tomar a iniciativa política de ir para ofensiva contra a classe dominante. E isso não está acontecendo desde 1989.

A eleição do Lula não foi suficiente. Também tínhamos este idealismo – não vou dizer ilusão porque é uma palavra muito forte -; nós do MST tínhamos um idealismo, achávamos que a simples vitória do Lula detonaria o reascenso do movimento de massas porque geraria novas esperanças. De certa forma, entre os Sem Terra isso se produziu porque em 2003 conseguimos mobilizar quase 200 mil famílias que foram acampar. Mas do ponto de vista da classe trabalhadora brasileira e do povo em geral, embora tenham votado no Lula, isso não foi suficiente para detonar um processo de reascenso do movimento de massa.

Juarez Guimarães – Esta análise que você está fazendo é muito importante no sentido de uma certa sensibilidade extremada para o que há de limite, não apenas externo a nós na conjuntura internacional, no poder das classes dominantes, mas nos limites do nosso próprio movimento. De fato, eu colocaria uma questão para continuarmos refletindo sobre essa idéia do refluxo, assim entendido por você, isto é, a dificuldade de construir um movimento de unidade popular em torno de um projeto que unificasse as iniciativas…

João Pedro Stedile – Que acumule e que vá para ofensiva.

Juarez Guimarães – Forçando uma comparação com o que está ocorrendo na Venezuela, será que seria possível falarmos em diferentes padrões de lutas de classes? No seguinte sentido: na Venezuela temos uma situação em que o sistema político sofreu profunda deslegitimação social, inclusive, temos uma classe dominante profundamente predatória e vinculada ao Estado, uma situação em que as Forças Armadas se moveram para se distanciar dessas elites corrompidas e uma situação em que a intervenção direta dos Estados Unidos provocou um surto importante de rejeição antiimperialista. E isso, então, configurou um padrão de luta social, de luta de classes que é muito diferente do nosso padrão, como você estava explicando, isto é, de um movimento que se encontrou num processo de institucionalização muito forte no seu desenvolvimento, principalmente nos anos 1990, e de um governo que se relaciona com a luta de classes, inclusive com as classes dominantes, a partir de dentro do Estado, nos seus limites constitucionais, que nós conhecemos muito bem. Então estaríamos inseridos em outro padrão de luta de classes. Como fazer mover este padrão, com todos os limites que ele coloca para a superação desse refluxo, em direção a uma alteração da correlação de forças favoráveis às mudanças históricas que ansiamos?

João Pedro Stedile – Muito bem, de novo vou recorrer a um contexto mais amplo. Nós não temos uma visão de que na América Latina está havendo um reascenso do movimento de massa como é freqüente ler nos jornais de esquerda – “Agora estamos numa nova etapa histórica, revolucionária da América Latina” ou sobre “o Fórum Social Mundial de Caracas representou isso ou aquilo”. É claro que estamos em melhores condições do que a década de 1990, é óbvio que há mudanças em curso. A história é a história de mudanças, às vezes para pior, às vezes para melhor, neste caso as mudanças que estão ocorrendo são para melhor. Mas você disse bem, não há e não poderia haver em sociedades tão diferentes como na América Latina, um padrão unitário para as massas reagirem à correlação de forças que elas enfrentam em cada país. Então, a América Latina está vivendo momentos, em cada um de seus países, muito diferenciados.

Em alguns países o povo está usando as eleições para lutar contra o neoliberalismo, em outros, as ruas. Mas num contexto geral, acreditamos que está havendo um reascenso do movimento de massas apenas na Bolívia e, na Venezuela – desde o golpe de 2003 para cá, pois mesmo quando o Chavez foi eleito, não havia movimento de reascenso de massas, ele foi eleito por uma reação da população contra a corrupção. Houve reação do movimento de massas quando ele foi recolocado no governo, depois do golpe de 2003 – aí, sim, houve um reascenso do movimento de massas na Venezuela.

Como você disse bem, lá ele se mantém também em função dos ataques permanentes que o império faz por causa da relação do petróleo, então, isso obriga as massas venezuelanas a um grau mais dinâmico de politização.

E é interessante olhar a situação de cada país da América Latina, não só para ver as diferenças, mas para ver as semelhanças, porque muitos países adotaram a via eleitoral para fazer o protesto contra o neoliberalismo e, depois, por não haver reascenso do movimento de massas, não conseguiram fazer mudanças. É o caso da Argentina, é o caso do Equador, que nos últimos dez anos elegeu e derrubou 6 (seis) presidentes e todos sempre como contestação – mas não houve mudanças.

Voltemos ao Brasil, com um olhar mais prospectivo dos movimentos sociais, olhando para o futuro. Nós temos uma leitura complementar: de um lado dizemos: “temos que seguir plantando árvores para que possamos colher frutos perenes a longo prazo”. Não podemos gerar ilusão no nosso povo de que as verdadeiras soluções para seus problemas dependem apenas do governo ou estão aí na esquina. As mudanças estruturais da sociedade brasileira ainda vão demorar muito tempo, ou seja, é um projeto de médio e longo prazo. Então, as esquerdas que quiserem ser conseqüentes – as esquerdas sociais e partidárias – têm que trabalhar com uma visão de longo prazo que isso vai ajudar a reconstrução e o reascenso da luta. Há algumas tarefas permanentes cujos resultados serão de médio e longo prazos e que as esquerdas terão que se colocar para enfrentar a situação de crise que vivemos. O primeiro, como eu disse, é a volta da formação política da militância, para produzir militantes e quadros que tenham uma visão correta dos problemas da nossa sociedade, para nem cair no eleitoralismo idealista e nem cair num revolucionarismo sectário.

Precisamos preparar pessoas que interpretem a realidade brasileira e tenham capacidade de transformá-la. Isso é o papel da formação e isso depende de estudo, de conhecimento, de debate político e de participação nas lutas sociais.

Segundo elemento: temos que voltar a fazer trabalho de base, o que significa organizar as pessoas nos seus locais de vivência, seja na fábrica, seja na comunidade rural, seja no colégio ou na universidade. Montar grupos em que as pessoas criem uma sociabilidade política e que ajudem a criar formas coletivas de luta. Isso também foi abandonado, inclusive pela igreja católica. A igreja católica faz um trabalho importante de conscientização, mas a bem da verdade, também está sofrendo este refluxo do movimento de massas e não tem conseguido reconstruir os grupos de famílias, o que foram as CEBs, na época do reascenso do movimento de massas de 1979-89, quando tiveram papel importante.

Um terceiro elemento é a necessidade de priorizarmos o trabalho com a juventude pobre urbana.
Juventude é o setor social que representa as reservas e a vontade de mudanças. E no caso da juventude urbana brasileira, ela está completamente sem alternativas. E ninguém está fazendo trabalho político, conscientizando, organizando. Os poucos movimentos são localizados, embora importantes, ainda insuficientes. E há um enorme potencial, uma necessidade prioritária de nos dedicarmos a isso. Veja um dado apenas, nós tivemos três milhões de jovens que terminaram o segundo grau, em 2005 e fizeram o exame do ENEM no final do ano. Destes, um milhão tirou a nota mínima para se credenciar a bolsa do Pro-Uni. Destes, o governo selecionou os cem mil primeiros colocados. Bem, sobraram 2, 9 milhões, sem perspectivas, sem universidade, sem emprego. Sem futuro. E nesse ano de 2006, virão mais três milhões…

Há outro aspecto que é o estímulo às lutas de massa. Criou-se uma certa dicotomia nos partidos de esquerda: se participa nas campanhas eleitorais ou se faz luta no seu sindicato, como se houvesse esta dicotomia… Não. Uma complementa a outra. Talvez esse seja o pior erro dos partidos que priorizaram a via institucional. O problema não é a via institucional, a via institucional faz parte da vida das pessoas, nós vamos debater sempre, vamos participar sempre. O problema é ter abandonado o outro lado, a luta de massa. Porque são as lutas de massa que acumulam força, que educam as massas; os militantes e os quadros são educados na formação política, mas as massas são educadas na luta. E quando não se prioriza a luta de massa, abandona-se também a concepção de que o povo é e deve ser o principal ator político, para as mudanças. As eleições não transformam o povo em agente e mudança. Nas eleições o povo é um mero ator passivo que vai na urna e deposita o seu voto e depois não tem controle nenhum, tanto é que nem se lembra em quem votou, para quem ele deu esse poder de representação.

E é preciso fazer um debate na nossa esquerda social e nos movimentos de recuperar isso, que se relaciona com o que falei antes da crise ideológica, recuperar os valores da prática política como parte do projeto histórico, porque senão você vai mudar a sua prática política depois de chegar no poder? Você vai ser solidário, vai ser companheiro, vai se indignar com as injustiças só depois que estiver lá? Não. Esses valores que fazem parte do nosso projeto histórico têm que ser parte do nosso cotidiano, da nossa luta política. Isso está abandonado. Você vê como as pessoas não reagem mais às injustiças que todos os dias afloram na nossa cara, na rua? No Rio de Janeiro policiais militares mataram 27 pessoas num sábado de tarde e ninguém reage. E o que está acontecendo no Haiti? Ninguém reage. E o que está acontecendo no Oriente Médio? Ninguém reage. Isso faz parte da crise ideológica de valores das pessoas, não se identificarem mais com causas da justiça social. Então, esses elementos fazem parte desse “o que fazer” permanente, mas que é fundamental para ter um reascenso do movimento de massas.

Há um outro aspecto que poderíamos chamar de “plantar alfaces”, que é da luta cotidiana. Há muitas pessoas pessimistas – “não, do jeito que está a política isso vai demorar 20 anos”, “se os tucanos voltarem vão ser mais 15 anos”. Acho que tudo isso faz parte do clima de desânimo, não tem base científica nenhuma. O que temos debatido nos movimentos é que o neoliberalismo não resolveu os problemas fundamentais da sociedade brasileira, ao contrário, a desigualdade, as injustiças afloram cada vez mais, a ponto de em algumas cidades estarmos vivendo até cenas da barbárie social, o que é degradante. Mas no Brasil há no mínimo 120, 150 milhões de brasileiros que não têm claro para onde ir e não têm as suas necessidades básicas atendidas. Isso é uma massa enorme que, numa hora dessas, vai dar um estalo. E falo isso não por idealismo, pela vontade que temos de que essas massas se levantem, mas porque, analisando a história do Brasil e analisando a história de luta de classes no mundo inteiro, há momentos na vida dos povos em que acontecem esses estalos, em que as massas se movem quando se achava que elas já estavam derrotadas por um longo período. O Brasil é uma sociedade gigantesca, são mais de 100 milhões de pobres. Quando esses 100 milhões se moverem para algum lado, será um tsunami na política. E é essa nossa esperança, aí vai ser o reascenso.

Juarez Guimarães – Na sua resposta há dois elementos que sobre os quais gostaria de refletir com você. O primeiro deles é a idéia de que o processo da mudança brasileira, da revolução brasileira, é um processo de longa maturação. De certa maneira, isso traduz uma inserção no seu pensamento, no próprio MST, de certas tradições de estudiosos do Brasil que pensaram esses tempos da mudança em período mais longos, como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Celso Furtado etc. Voltaremos a este tema no segundo momento da entrevista, analisando o acúmulo do MST na luta pela Reforma Agrária. Mas você tocou em outro elemento-chave, a combinação da luta de massas e da luta institucional, recusando essas duas hipóteses como alternativas excludentes.

Mas você utilizou várias vezes a expressão “nós temos que voltar a fazer, nós temos que voltar a essas práticas que abandonamos”. Isso não seria insuficiente diante do ineditismo da situação, isto é, estamos governando o Brasil, essa é a grande novidade histórica, estamos no centro do Estado brasileiro. Será que a solução deste impasse não estaria na radicalização da democracia, em este Estado se abrir mais à participação popular, em fazer algum tipo de fusão entre a vida pública do Estado brasileiro na política e a vida do cidadão comum?

João Pedro Stedile – Evidentemente que há um enorme espaço para o que alguns chamam de radicalização da democracia – por exemplo, o professor Fábio Comparato tem levantado idéias muito interessantes de como levar ao extremo tudo aquilo que significa a sociedade republicana, em que todos e todas tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Evidentemente há um enorme espaço a ser aproveitado na esfera institucional, porque vivemos um quadro de extrema desigualdade e exclusão. O Estado brasileiro é um Estado montado pelas elites para unicamente garantir seus privilégios.

Então, tudo o que podermos avançar para melhorar a participação do povo na gestão pública é positivo. Isso vai ajudar a construir o processo de mudanças estruturais, isso vai ajudar para que ocorram mudanças na sociedade. Mas estou partindo de uma avaliação crítica de que a experiência desses quatro anos do governo Lula não nos dá o direito de cair na ilusão de que esses avanços institucionais se darão pela vontade do governo. Só haverá essa inflexão mais democratizante do governo se houver pressão das bases, seja das bases partidárias, dos movimentos sociais e das mobilizações de massa..

SOBRE O MST E A LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA

Juarez Guimarães – O MST nasceu quase junto, colado ao processo de redemocratização do país. Nesses 21 anos ele foi fundamental para repor a legitimidade da reforma agrária na cena política brasileira, mas, ao mesmo tempo, não teve forças suficientes para que essa reforma agrária se tornasse plenamente uma realidade. Qual o balanço histórico que você faz do MST?

João Pedro Stedile – Há muitos aspectos que podemos considerar. Primeiro, quero reafirmar, concordando contigo, que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é fruto de um contexto histórico de reascenso do movimento de massas das décadas de 1970 e 1980 e da natureza da luta de classes naquele período, que deu a conformação do que é o MST. Nós, de um lado, recuperamos a idéia clássica de que só a luta de massas é que vai arrancando conquistas da classe dominante, daí o revigoramento da ocupação de terras como uma forma de luta de massas, necessária para o acúmulo de forças e para a consciência das pessoas…

Juarez Guimarães – A inspiração disso foi diretamente da tradição das Ligas Camponesas?

João Pedro Stedile – Também, não só, porque a forma de luta de ocupação sempre existiu, tanto na sociedade brasileira como em outros movimentos camponeses, mas, em geral, ela ocorria muito mais como reação, ou até de forma espontânea ou, mais especificamente, como uma forma localizada de luta camponesa. O que o MST procurou aprender com o passado foi criar uma rede, fazer o movimento organizar a ocupação para que cada ocupação fosse um elo de uma força maior. Essa é a diferença das ocupações da história em geral.

Então, somos fruto desse processo. Somos fruto também dessa concepção da esquerda social de levar os princípios organizativos para o movimento de massa – coisa que não havia na tradição do Partido Comunista ortodoxo.

Juarez Guimarães – Explique um pouco mais essa diferença com a tradição do Partido Comunista.

João Pedro Stedile – O Partido Comunista, ou a esquerda ortodoxa, tinha uma visão muito estreita de como se relacionar com os movimentos de massa, que eram vistos como meras correias de transmissão das decisões partidárias.

E nós, na década de 1970, como fruto da própria crise ideológica que vinha desde o 20º Congresso [do PCUS], incorporamos no movimento a idéia da autonomia do partido, mas incorporando no movimento social princípios organizativos que os partidos tinham preservado ao longo da luta de classes.

Então, a idéia da formação de quadros, de ter os nossos jornais, de ter as nossas escolas, a idéia de núcleo de base, tudo isso aprendemos da luta de classes em geral, ou seja, que os partidos eram os condutores – e nós incorporamos no movimento. Essa é a novidade do MST. É por isso que existimos até hoje, senão já teríamos acabado na primeira crise que, a rigor, aconteceu, sobretudo, com o governo Collor. O governo Collor tinha a determinação de acabar com o MST. E só conseguimos superá-lo porque ele durou pouco e, em segundo lugar, porque já tínhamos uma concepção do movimento de massas que nos constituía como uma força social.

Então, nós, ao longo da década de 1980, acumulamos muita experiência de luta de massa e muita força social organizada em termos de conquistar fazendas, organizar assentamentos, organizar a produção. Depois, na década de 1990, sofremos também, como toda a classe trabalhadora, essa derrota política que foi o advento do neoliberalismo.

O neoliberalismo afetou decisivamente a viabilidade da reforma agrária no Brasil. O grande aprendizado que estamos sistematizando agora – talvez até o governo Lula tenha nos ajudado a isso – é compreender de fato as limitações que o neoliberalismo impõe à reforma agrária. Porque, de certa forma, nos primeiro anos de MST havia uma certa visão idealista de que era possível democratizar a propriedade da terra – já que ela é apenas uma bandeira republicana, não é uma bandeira a rigor socialista – e resolver o problema fundamental dos camponeses sem terra, independentemente do modelo econômico, porque a rigor não afetava a estrutura capitalista. Hoje, estamos vendo que no neoliberalismo – o neoliberalismo no campo, na agricultura, é a subordinação completa das formas de organização da produção agrícola às transnacionais e ao capital financeiro – isso inviabiliza definitivamente a possibilidade de organizar a produção camponesa. E talvez essa seja uma das divergências ou diferenças ideológicas que temos com setores do governo que acham que é possível conviver o modo de produção camponês com o agronegócio, que é a síntese do neoliberalismo no campo. Então, os nossos inimigos antes eram o latifúndio atrasado, patrimonialista, que reservava a terra como poder econômico e político. Desde a década de 1990, para a reforma agrária avançar precisamos enfrentar um poder muito maior, o poder do agronegócio, das transnacionais, do capital internacional e suas alianças internas, como a própria mídia..

Juarez Guimarães – De certa forma, essa fusão entre a luta dos pobres do campo e o sentido anticapitalista dela, é uma construção da CPT (Comissão Pastoral da Terra), no sentido de que a Teologia da Libertação formulou, radicalizou a idéia da função social da propriedade, contrapondo terra de trabalho e terra de negócio, como aparece, aliás, num documento de 1980 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). O MST herda essa perspectiva renovando a legitimidade da reforma agrária não mais, como você disse, em relação ao latifúndio atrasado, mas ao agronegócio, que exacerba essas dimensões de exploração em detrimento da função social da terra. A diferença da cultura do MST, a partir de um determinado momento, em relação ao acúmulo da CPT, é um investimento que vocês fizeram, enquanto movimento, em buscar na inteligência brasileira elementos, análises, projeções para formular uma alternativa de desenvolvimento – daí o diálogo que o programa do MST passou a fazer com as análises de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Celso Furtado? Você poderia nos falar a quantas anda esse diálogo?

João Pedro Stedile – Esta questão envolve vários elementos, aos quais quero me referir, ainda que de forma superficial, mas acho que para os leitores pode ser útil. Primeiro, é verdade que a CPT – e mais do que a CPT, a Teologia da Libertação – foi revolucionária no Brasil, porque ela foi além da visão republicana de que a terra deve ser para todos. Ela incorporou na nossa doutrina a idéia que a terra é um bem da natureza, um dom de Deus e que, portanto, não se trata somente de democratizar o acesso para os camponeses, mas ela é um bem social. Então, essa elaboração ideológica é avançada, mas nem a igreja, nem a Teologia da Libertação e nem a CPT, que eram os operadores mais práticos, tinham uma base científica de análise de como você organiza a produção nesta terra. E essa foi a limitação, o desafio que nós tivemos, então, depois de conquistar a terra. A CPT dava o combustível ideológico de segurança – “vocês têm direito a lutar pela terra” -, porque tanto do ponto de vista republicano como do ponto de vista doutrinário da bíblia, a terra é para todos. Agora, depois de você ter a terra, as contradições da luta de classes continuam e aí não havia um acúmulo político-ideológico que nos ajudasse a enfrentar o que significa produzir para todos, produzir para quem, produzir como? Então, desde a metade da década de 1990 para cá estamos tentando resolver isso. Foi aí que descobrimos que não bastava ter a terra, era preciso ter um projeto de organização dos assentamentos, e que é insuficiente você ter o projeto de produção de um assentamento como se fosse uma ilha isolada. Chegamos a construir certas ilhas de eficiência econômica, certos territórios livres, que até representam ótimas condições de vida para aqueles que moram lá, mas que não representam mudança na sociedade como um todo. Foi a partir daí que tivemos que nos debruçar com mais paciência em procurar entender qual era a natureza da reforma agrária que precisamos para a sociedade brasileira, que não era unicamente dividir a terra. O capitalismo, que no século XIX precisou da reforma agrária – tanto é que esta foi uma bandeira capitalista – para estimular o mercado interno, agora, na sua etapa monopólica e imperialista, não disputa mais a propriedade da terra conosco, ele disputa o controle da produção e da comercialização. Então, isso exige uma elaboração maior. Ao mesmo tempo, a nossa leitura doutrinária era insuficiente – somos socialistas, temos certeza que a sociedade socialista será uma etapa superior em que as pessoas serão mais iguais, onde haverá mais justiça. Mas agora temos um problema, estamos no capitalismo neoliberal. Até chegarmos nesta sociedade socialista que sonhamos, e que na nossa leitura é fruto de um longo período histórico de transformação das estruturas, vai um longo caminho.

Então, tivemos que buscar elaboração teórica que nos ajudasse a compreender isso. E foi aí que fomos nos abastecer não só nas obras clássicas de Marx e dos que procuraram interpretar o capitalismo depois do Marx – e fugimos do reducionismo de “marxismo-leninismo”, a nossa visão é de que todos os pensadores vão contribuindo numa elaboração permanente da ciência e da reinterpretação da realidade. Para nós todos os teóricos são importantes, não interessa qual é a corrente ideológica dele, mas se ele puder nos ensinar alguma coisa para interpretar e transformar a realidade: nós procuramos aproveitar. E no caso brasileiro procuramos recuperar esses pensadores que tinham um claro compromisso com o povo brasileiro e que procuravam analisar a realidade brasileira, como era o caso do Caio Prado Jr.,Celso Furtado, no sentido mais econômico, do Florestan Fernandes, na luta de classes, do Milton Santos, Darcy Ribeiro, Josué de Castro, etc. do Rui Mauro Marini, que nos ajudou a entender a Teoria da Dependência. Enfim, procuramos recuperar esses pensadores brasileiros para nos ajudar a entender qual era a ligação que a reforma agrária iria ter com esse processo de mudança. E chegamos à seguinte síntese, que ainda está em processo de construção: evidentemente não há mais espaço no Brasil para uma reforma agrária do tipo clássico capitalista, a burguesia não precisa distribuir terra, e, ao mesmo tempo, não adianta ficarmos sonhando com uma reforma agrária socialista, a famosa tese do Lênin de nacionalizar a propriedade da terra, isso também não resolve. Temos que construir um projeto de reforma agrária que seja coadunado com um projeto popular de desenvolvimento nacional. Nessa construção é que nos demos conta de que a reforma agrária, mesmo feita nos limites do capitalismo, é inviável se não mudarmos o modelo econômico para um modelo que distribua a renda, que priorize o mercado interno, ou seja, que enfrente o imperialismo. A reforma agrária no Brasil não é viável se não for parte de um projeto antineoliberal ou antiimperialista.

Juarez Guimarães – Mais exatamente, a própria reforma agrária, assim concebida, faz parte dessa mudança de modelo.

João Pedro Stedile – Faz parte dessa mudança de modelo. Há uma relação dialética aí. É por isso que às vezes temos divergência com setores do governo Lula que acham que é viável manter o agronegócio, que é a expressão do neoliberalismo e do imperialismo – que só organiza nossa produção para exportar, para ganhar dólar, dinheiro. E nós dizemos não, não estamos preocupados com o tamanho da propriedade, mas temos que organizar nossa agricultura para, em primeiro lugar, resolver os problemas do povo brasileiro, e não do proprietário da terra.

Juarez Guimarães – Neste sentido, você provavelmente concordaria com a idéia de que o último programa agrário apresentado pelo PT como programa de governo – o Programa de Vida Digna no Campo – é quase uma espécie de plataforma mínima de ações governamentais dentro de um contexto de possibilidades na atual correlação de forças. É diferente, então, desse programa histórico que vocês estão trabalhando que significa repensar a dominância do modelo agrário no Brasil e reorganizá-lo sob novas bases. Houve, de certa maneira, uma certa desradicalização do programa agrário do PT, desde 1989, talvez como expressão da dificuldade de encontrar os pontos de apoio dessa relação entre o novo modelo de desenvolvimento e a reforma agrária. E talvez essa ausência esteja, hoje, se expressando no conjunto do governo Lula, na forma como ele lida em seu conjunto com essa questão – não digo apenas o Ministério do Desenvolvimento Agrário, mas o Ministério da Agricultura, que talvez tenha um impacto muito forte na dinâmica de governo e que representa diretamente esses interesses do agronegócio. Neste sentido, quais seriam as questões fundamentais, programáticas, da reforma agrária, que vocês consideram fundamentais, para avançar a prática de um possível segundo mandato do Lula? Quais seriam as questões fundamentais do ponto de vista dos movimentos?

João Pedro Stedile – Primeiro de novo um comentário geral. Estávamos satisfeitos com o programa Vida Digna no Campo, porque a nossa leitura era a seguinte: o governo Lula não vai ser um governo socialista, mas vai ser um governo que pode reconstruir um projeto nacional-desenvolvimentista. Nesse sentido era um recuo em relação ao projeto democrático-popular de 1989, mas era um avanço em relação ao neoliberalismo. Então, se vamos fazer uma aliança com o nosso setor industrial produtivo e vamos desenvolver o mercado interno e distribuir renda – para isso era a aliança com o José Alencar -, o programa “Vida Digna no Campo” era o melhor programa que tínhamos, porque ele se coaduna com essa visão: o projeto de desenvolvimento nacional. É um pouco mais recuado do que o programa que debatíamos em 1989, mas é avançado para o neoliberalismo. Qual foi a mutação que houve? É que o “Vida Digna no Campo” foi jogado para as calendas, para a gaveta, ninguém mais deu bola para aquilo. Fizemos até uma provocação, em certo período do governo: editamos pontos dele sobre os transgênicos num cartaz, com assinatura do ministro Palocci, para ver se eles se lembravam o que tinham assinado. E quando o governo publicou o Plano Nacional de Reforma Agrária, em 2003, aí sim foi a derrota, um recuo do “Vida Digna no Campo”. Não há nada que vincule Plano Nacional de Reforma Agrária com o “Vida Digna no Campo”. O Plano Nacional de Reforma Agrária, na concepção palaciana, na leitura que fazemos, é um elenco de medidas compensatórias para acalmar os pobres do campo com os quais o governo tem compromissos eleitorais. E essa visão palaciana abandonou o que estava no “Vida Digna no Campo”. Por quê? Porque eles não querem admitir o pressuposto de que uma reforma agrária só se viabiliza no Brasil se a política econômica mudar, ou seja, se em vez de manter as diretrizes neoliberais atuais, do superávit primário, das taxas de juros, da política cambial, da prioridade de exportações e do pagamento prioritário dos juros das dívidas interna e externa, se essas prioridades forem mudadas e a política econômica se voltar para as outras prioridades que estavam presentes no projeto nacional: distribuir renda, desenvolver o mercado interno e gerar emprego. Aí a reforma agrária cabe. Nessa questão aparece de novo aquela mescla entre a nossa vontade e o que será possível na correlação de forças. Mas se você não tem vontade, se você não tem projeto, você não constrói força para mudar.

Juarez Guimarães – Você diz que uma plena execução do programa “Vida Digna no Campo” exigiria um outro modelo econômico, mas não encontramos no Vida Digna no Campo uma idéia, diretrizes, de qual seria a política do governo Lula em relação ao agronegócio, isto não está formulado lá. O item da reforma agrária é apenas um dos subitens de uma política agrária. A reforma agrária, nesse programa, não é o tema organizador de um conjunto de proposições, é um item entre outros. É deste ponto de vista que eu estava identificando o Vida Digna no Campo como uma espécie de um programa mínimo no interior do status quo.

João Pedro Stedile – Você tem razão, o “Vida Digna no Campo” não é um programa partidário, por isso lhe falta uma análise de classes, é um programa eleitoral, de governo. Então, eleitoralmente, quem elaborou não teve coragem, vamos dizer assim, de dar o nome aos inimigos que seriam prejudicados com uma possível política popular par ao campo.

Juarez Guimarães – Ou, talvez, exista no interior do PT e do próprio governo uma certa idéia de que o agronegócio tenha resolvido, no plano capitalista, o velho problema das forças produtivas no campo. Assim, ele é um elemento a ser considerado, integrado num plano de crescimento e estabilidade, e não mais um adversário. A questão que quero repor, a partir disso, é que, concordando com a noção de que a execução plena do programa Vida Digna no Campo exigiria, pelo menos, uma heterodoxia no tratamento macroeconômico, se não seria possível identificar, ao lado desses limites, alguns avanços importantes na gestão do governo Lula na questão agrária em relação aos governos anteriores. Por exemplo, a descriminalização e o diálogo com os movimentos sociais, o financiamento à agricultura familiar – que praticamente triplicou nestes quatro anos -, o apoio em assistência técnica e saúde aos assentamentos, uma certa dinamização do programa de assentamentos, mesmo que haja uma polêmica sobre os índices, sobre a forma de mensurar esses índices. Em relação aos governos passados há uma certa dinamização, há uma certa remontagem do INCRA, um esforço para evitar que ele se transformasse numa sucata de Estado, como já ocorreu. Então, não seria possível identificar alguns avanços, algumas diferenças, limitados por esse contexto, pelo fato de o governo Lula, por exemplo, ainda não ter tomado uma decisão de renovar o índice de produtividade que o levaria a se chocar exatamente com essas forças do agronegócio? Vocês têm colocado de maneira muito correta que esta medida é extremamente necessária para tornar a reforma agrária possível nos estados do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste do país, que concentram as forças do agronegócio.

João Pedro Stedile – Acho que tem várias partes que temos que analisar para poder compreender o que está acontecendo. Primeiro, reafirmo o que procurei explicar e você me ajudou depois na sua complementação: é impossível termos avanços reais na mudança da estrutura de poder e da produção agrária no país sem mudarmos o modelo econômico. É uma ilusão setores do governo acharem que é possível basear o desenvolvimento da nossa agricultura no agronegócio. O agronegócio é a remaquiagem da velha plantation do colonialismo, não traz nenhum benefício para a sociedade brasileira, ao contrário, as estatísticas estão mostrando isso com clareza: depredação do meio ambiente, concentração da propriedade da terra, trabalho escravo; os salários mais baixos da sociedade brasileira são os pagos no campo, alto índice de agrotóxicos que influi na qualidade dos alimentos e, mesmo quando produz para a exportação, se o governo não transfere a mais-valia com créditos rurais subsidiados, o agronegócio está inviabilizado. E todo mundo fica quieto. E tudo isso ainda com a Lei Kandir – que é um grande programa de subsídios às exportações…

Juarez Guimarães – Explique melhor o que é a Lei Kandir.

João Pedro Stedile – É uma lei feita pelo Antonio Kandir na época em que era ministro do Planejamento do Fernando Henrique, e que o atual governo não teve coragem de revogar, que isenta todas as exportações de produtos primários de ICMS. Então, em média, essas exportações têm um subsídio de 17 %, porque eles não pagam ICMS para exportar soja, minério de ferro, carne. Isso é uma transferência de mais-valia social para os fazendeiros e exportadores. Esse é um aspecto, não se pode analisar se houve avanços ou não simplesmente por medidas pontuais, temos que analisar como as classes tiveram avanço ou não. O segundo aspecto é que acho que não dá para analisar o governo Lula, na sua política agrária, apenas pelo MDA É um governo contraditório e as políticas para o campo são feitas, em primeiro lugar, pela política econômica e pelo Ministério da Agricultura. Então, neste bojo, acho que é cair numa emboscada da própria direita ficarmos, entre nós, analisando se o MDA ajudou ou não os camponeses. É o papel do MDA ajudar os camponeses. O problema é que o MDA não é o governo Lula, o governo Lula é formado pela política econômica, pelo Ministério da Agricultura e pelo MDA, e temos consciência disso – a direita também diz isto, que o MDA, o INCRA e certos setores do Ministério do Meio Ambiente são nossos aliados de classe. Mas eles não têm a capacidade política de flexionar a política num todo.

Agora, é minha obrigação, como militante petista e dirigente do MST, dizer, em relação aos três anos e meio do governo Lula, se houve avanços ou recuos para a agricultura camponesa, que o balanço é negativo para os camponeses. Não porque o MDA não fez mais do que ele devia, mas porque a classe patronal avançou mais, em função das outras políticas no Ministério da Agricultura e na política econômica. Então, chegamos até a fazer um levantamento das várias medidas tomadas no conjunto do governo e verificamos que há umas 10, 12 políticas que foram favoráveis a nós, como as que você citou, aumento do volume do PRONAF, aumento dos recursos da assistência técnica; e, para se contrapor a essas dez, há umas 30 medidas que o governo tomou, que beneficiaram os latifundiários e o agronegócio. De maneira que, até do ponto de vista estatístico, do numero de iniciativas que o governo tomou, o balanço é negativo, o balanço do conjunto do governo para a agricultura camponesa, na nossa avaliação, é negativa. E essa é a dificuldade real que estamos enfrentando agora.

Juarez Guimarães – Ao invés de termos, então, como nos governos passados, uma política de Estado contra a classe camponesa no seu conjunto, nós temos um governo que age contraditoriamente no campo com políticas fortes, porque vinculadas à própria lógica da gestão macroeconômica, que acabam delimitando um certo espaço e limitando o espaço histórico de avanços possíveis por uma ação restrita ao MDA. É essa a sua idéia?

João Pedro Stedile – Vou tentar ilustrar um pouquinho mais. Não cabe a comparação do governo Lula com o governo Fernando Henrique. O governo Fernando Henrique é o governo alta burguesia brasileira subordinada ao capital internacional, esses são nossos inimigos, ficaram oito anos massacrando o movimento camponês. Então, evidentemente o governo Lula é um avanço em relação ao governo Fernando Henrique, e nós devemos fugir desta emboscada, que pode ser útil do ponto de vista eleitoral, de marketing, de ficar fazendo comparações com o governo Fernando Henrique. O que devemos que analisar é o governo Lula: em que avançamos e em que fomos derrotados; houve avanços, mas houve muitas derrotas, por causa dessa composição dos interesses de classes dos latifundiários que está presente no governo Lula e pela natureza do estado brasileiro.

Juarez Guimarães – Mais duas perguntas a respeito do MST. Tive oportunidade de participar, alguns anos atrás, de uma polêmica com o sociólogo Zander Navarro, que obstinava em fazer uma análise do MST como um partido leninista formado no centralismo democrático e nocivo à democracia brasileira. Na época, contra-argumentei dizendo que o MST era um tipo difícil para ser analisado por um sociólogo porque apresentava muitas inovações, e compunha uma ambigüidade virtuosa entre o movimento social, certos elementos de partido – político na medida em que fugia do corporativismo numa visão apenas da sua base social, e também na medida em que ele construía a sua própria institucionalidade através de cooperativas, institutos vários de educação, de certa maneira ele criava uma institucionalidade também; então, ele compunha essas três dimensões ao mesmo tempo. Afinal, o que é o MST hoje?

João Pedro Stedile – Primeiro, vou aproveitar para fazer uma crítica pública, que já fizemos em privado. O Zander Navarro tem todo direito de dar a opinião dele onde quiser, aqui, no Banco Mundial, na Universidade de Cambridge, onde ele está agora; faz parte da democracia. Mas ele não tem autoridade moral nenhuma para achar que é um especialista em MST. Faz pelo menos dez anos que o máximo que o sociólogo Zander Navarro sabe do MST é pelo o que lê nos jornais, ou seja, é um viés do que a classe dominante escreve sobre nós. Portanto, na nossa ótica, ele não tem base científica para ficar analisando as nossas ações. Imagino que a crítica fundamental que o Zander fazia – e ele tem todo direito de fazê-la porque isso depende da visão ideológica de cada um – é que na verdade o MST como movimento social, embora já tenha 20 anos, inovou do ponto de vista da história dos movimentos sociais, porque nós, ao mesmo tempo, incorporamos como fonte de nossa própria existência, várias correntes. Não somos fruto de apenas uma corrente, somos fruto do trabalho de igreja, do sindicato, das organizações de esquerda, somos fruto de tudo isso, num processo de reascenso do movimento de massa que houve na nossa sociedade. Mas ao mesmo tempo, como eu procurei explicar antes, quando nos constituímos de forma autônoma em relação aos partidos, incluímos dentro do MST princípios organizativos que a classe trabalhadora tinha desenvolvido ao longo da sua luta contra o capitalismo, e consideramos esses princípios – e por isso chamamos de princípios – como necessários para qualquer tipo de organização da classe trabalhadora, independentemente se é sindicato, se é partido, se é movimento social, se é associação de bairro. Que princípios são esses: a idéia da direção colegiada, de não ter presidente, secretário, tesoureiro, embora as divisões de função existam; a idéia de direção coletiva; de formação de quadros; de garantir unidade e disciplina, não disciplina hierárquica ou militar, mas disciplina da democracia – se a maioria decide, é preciso que haja unidade em torno desta decisão; a idéia do trabalho de base; da luta de massas; e a idéia da inserção dos militantes e dirigentes em todo este trabalho. Evidentemente que o Zander identificava nisso, como você mesmo disse, resquícios leninistas. Isso não é resquício leninista, isso é fruto da experiência histórica de 250 anos da classe trabalhadora contra o capitalismo, e, na nossa aplicação prática nesses 20 anos, eles demonstraram ser necessários. Ao mesmo tempo, outros sociólogos nos criticam por recuperarmos a cultura, a mística, que foi uma experiência que acumulamos tanto pelo viés da igreja como pelo viés da própria cultura do nosso povo. Procuramos em todas as atividades do movimento incorporar essa visão pedagógica de cultivar o nosso projeto com atividades culturais, com atividades lúdicas, com a simbologia. O que é a simbologia? Não é uma seita dogmática, não é o fanatismo, a simbologia é parte da psicologia social; não é parte da luta política. A simbologia é uma síntese do nosso projeto, que se quer projetar para o coletivo. Faz-se isso em jogo de futebol, em tudo o que tiver massa você usa o símbolo, porque ele resume, ele sintetiza e aglutina em torno do projeto, do objetivo coletivo: bandeira, hino, cantos, alegorias, passeatas, palavras de ordem, tudo isso chamamos de mística.

Achamos que é importante os movimentos sociais cultivarem essa mística. O que é cultivar a mística? É cultivar o projeto. Agora, se você não tem projeto, evidentemente não tem como usar a cultura, a arte, a simbologia para cultivar um projeto que não existe. Aí dizemos que falta mística. Falta cultivar o mistério de um projeto que não existe.

Juarez Guimarães – A minha segunda pergunta seria exatamente sobre isso, sobre a capacidade que vocês têm demonstrado de preservar uma cultura socialista no interior dessa vasta crise do socialismo que vivemos. Isto é, exatamente se valendo desta simbologia, que vocês chamam de mística e que na tradição da CPT se trata de espiritualidade, e talvez o ponto mais interessante seja de cultivar isso não de forma sectária, alheia à cultura dos brasileiros, mas de procurar uma fusão com esta cultura popular brasileira. Eu ficaria por aqui e nós passaríamos para terceira parte.

SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICA

Juarez Guimarães – Entrando na conjuntura decisiva de 2006, poderíamos diagnosticar que houve quase um empate estratégico entre as forças de oposição e as forças que sustentavam o governo Lula, isto é, elas não conseguiram impor o impeachment nem retirar o Lula de cena enquanto um potencial candidato competitivo nas eleições presidenciais, mas por outro lado também não houve a reforma política, aqueles caminhos propostos na Carta ao Povo Brasileiro não foram seguidos. Como você analisa a passagem da crise política para a volta do neoliberalismo? Qual é a ameaça real de retorno do neoliberalismo ao governo do Brasil? Como trabalhar para evitá-lo?

João Pedro Stedile – Sou otimista, acho que é muito difícil o povo esquecer o que significou os governos do Fernando Henrique Cardoso e, portanto, que ocorra a volta do neoliberalismo puro, vamos dizer assim, e com a hegemonia dos tucanos. Acho que há um sentimento popular consolidado de que o neoliberalismo é uma perversidade para a nossa sociedade. Acho muito difícil os tucanos ganharem as eleições com qualquer dos candidatos, embora saibamos que o mais perigoso é o José Serra, até porque tem mais habilidade de dourar melhor o discurso e a pílula.

Agora, do ponto de vista das forças populares, nós fizemos uma assembléia popular no final de outubro em Brasília, onde havia 8.800 militantes de vários movimentos sociais de todo Brasil e tiramos uma linha de atuação comum, unitária, que acho que vai contribuir para avançarmos, e produzimos um texto, intitulado “O Brasil que queremos”, que não é bem um programa, mas é um aglutinado de debates que houve na preparação dessa assembléia. Então a nossa idéia é pegar esse texto, que tem uma contribuição muito grande das bases da igreja católica, e fazer um trabalho inverso, voltar a fazer o que estamos chamando de um mutirão de base, com cartilhas e com material mais didático, e repassar nas nossas bases, quase que casa por casa, para ir elevando o nível de consciência da nossa base e estimulando um debate em torno de projetos, para que, no período eleitoral, não seja simplesmente votar no Lula, mas que seja uma espécie de voto compromissado com o projeto.

Programatizar a disputa. E nessa metodologia temos previsto tentar fazer assembléias municipais até setembro para justamente aflorar este debate lá na base, porque não adianta ficar somente em grandes encontros nacionais, que têm um caráter de unificar visões, mas que não acumulam necessariamente força. E na semana de 1 a 7 de setembro, quando tradicionalmente fazemos as mobilizações do Grito dos Excluídos e temos todo esse tema da Semana da Pátria, nós tentaríamos fazer assembléias estaduais e mobilizações estaduais que trouxessem esse lado programático para o debate político-eleitoral.

Essa é a perspectiva que estamos trabalhando durante o ano do ponto de vista unitário, sem desmerecer o que cada movimento vai fazer por conta própria. É seguir lutando e se mobilizando para aquelas questões particulares que afetam as necessidades da sua base; nós na reforma agrária, continuando a ocupar terra, a turma dos desempregados vai continuar fazendo as mobilizações deles e assim por diante.

Juarez Guimarães – Você já se referiu em algum momento sobre a candidatura do Garotinho, caracterizando-a como nacional-desenvolvimentista. De uma certa maneira, a experiência dos governos Garotinho e Rosinha no Rio não conformam essa qualificação. Seria apenas pela participação do Carlos Lessa como um dos formuladores do seu programa? Em que medida essa caracterização seria de fato sustentável diante da prática, da história do Garotinho, do modo que ele faz política? Será que não haveria até uma artificialidade da presença do Lessa, que, ele sim, representa toda uma tradição de pensamento nacional-desenvolvimentista?

João Pedro Stedile – No Brasil é muito complicado fazer uma análise partidária, porque não há uma tradição de organização política em torno dos partidos. Ainda mais dos setores desideologizados da classe média e da classe dominante. Eu tenho lido uma interpretação, e concordo com ela, de que a classe dominante faz a disputa política e ideológica não pelo partido, ela faz pelos meios de comunicação, disputando a hegemonia na sociedade pelo monopólio, que ela controla, dos jornais, das revistas e da televisão, e o partido ela só usa para disputar o Estado. Então, de certa forma também, os candidatos que nós temos não necessariamente representam programas ideológicos, compromissos doutrinários, às vezes não representam nem o partido a que são filiados. Parece-me que é o caso do Garotinho, porque ele mesmo já mudou tanto de partido que não se sente compromissado com nenhum deles. Mas eu estou convencido de que a candidatura do PMDB, se eles mantiverem uma candidatura, independentemente de quem seja o candidato, agregará votos anti-neoliberais; as pessoas que forem votar numa candidatura PMDB votam porque são contra o neoliberalismo e não estão satisfeitos com o Lula ou não se identificam com o Lula. Então, é um voto que pode acumular força para ajudar a flexionar a mudança na política econômica no segundo mandato. Da mesma forma, a candidatura Heloisa Helena. Ela aglutina várias correntes da esquerda, quem for votar na Heloisa Helena dará um voto anti-neoliberal.

Esperamos que em um eventual segundo mandato do Lula haja uma readequação das forças políticas que o sustentam, uma readequação para a esquerda. E aqui, gostaria de manifestar uma opinião muito pessoal, que pode não agradar a alguns, por se tratar de uma publicação do PT, mas estou torcendo para que o Garotinho faça muito voto e a Heloisa Helena faça muito voto, para que no segundo turno o governo Lula, em vez de fazer uma aliança com forças de direita, com partidos e forças conservadoras, ou até com certos setores tucanos, como já fez, no passado em diversos estados, faça agora uma aliança prioritária com setores nacional-desenvolvimentistas e com a esquerda. Por quê?

Sem julgar a natureza dos candidatos – Garotinho ou Heloisa Helena -, mas obviamente os votos nessas duas candidaturas serão votos que querem mudanças anti-neoliberais. Então, temos que criar um grau de alianças e de forças em torno do segundo mandato do Lula que gere força suficiente para um projeto econômico anti-neoliberal e anti-imperia